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10 de março de 2015

A mulher e a Língua.


Eu só vim perceber o quanto estava sendo “mulher” depois que tudo passou. Eu sempre me achei muito mais humano do que “mulher” e sempre achei que não precisaria ler Simone de Beauvoir ou Anais Nin ou alguma dessas. Eu nunca tinha experimentado ser “mulher”, sempre agi como “homem”, elas diziam. Sempre fui a que não queria dormir do lado de ninguém, a que não queria contato depois, a que bem, já tive o que queria de você, já posso ir embora, nunca dependi. Aliás, desde que me tornei “gente”, sempre dependeram mais de mim do que eu dos outros, e eu só estava cansada disso, de ser mãe e ser racional, mesmo não sendo.
Porém me comportei como “mulher”, e é incrível como nós nos comportamos como “mulher”. Por que os parênteses? Porque mulher mesmo não é nada disso. “Mulher” é um ser frágil, que precisa ser protegido, que depende dos outros, que não é capaz sozinha, que precisa ser antes de tudo leve, que deve aceitar, que deve agüentar, deve ser organizada e “respeitável” – eu  não sou “mulher”. E eu sabia que se eu fosse mulher, ao invés de “mulher”, eu ia perder tudo que eu dava mais importância na vida. Mas a gente não consegue ser o que não se é durante muito tempo, eu não sou frágil, não preciso ser protegida, não dependo dos outros, sempre consegui tudo sozinha, nunca fui leve o tempo todo, se eu estouro na mesma hora que brigo com você eu falo coisas absurdas que não deveria falar, nunca aceitei as coisas sem questionar, nunca agüentei bem situações que eu achava absurdas, organização nunca foi meu forte (coisa que sim, estou tentando melhorar) e bem, respeitável para uma pessoa que segue a lei kantiana do imperativo categórico, eu sempre fui, mas eu sempre fui bastante impulsiva e tudo que eu queria fazer que não ferisse o imperativo categórico eu fazia, porque bem, era simplesmente o que eu queria fazer.
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Uma vez, quando eu estava nas minhas primeiras aulas de direção, eu no meio de um trânsito caótico e eu super medrosa em estar com um carro na rua, percebi que, se eu ligar a seta para a esquerda o outro carro vai achar que eu vou para esquerda e vai tomar providencias devido a isso. Essa sensação de que eu faço a diferença e que eu sou um sujeito, foi incrível naquele momento. Foi como se tudo tivesse parado e eu visto que, bem eu sou um sujeito, eu sou um carro no meio dessa rua que se eu fizer qualquer coisa vai interferir na vida das outras pessoas, eu existo. Para outras pessoas isso não passa de uma maluquice e isso é tão banal e sutil que ninguém nem se dê conta, mas eu só me dei conta da minha sujeitilidade* naquele dia. Eu me senti empoderada naquele dia, pois eu era alguém ali. O que é bem engraçado para uma pessoa que sempre conseguiu tudo sozinha, trabalha em multinacional, já morou fora, fala duas línguas, canta, dança e representa, blábláblá. Minha mãe sempre me falou que eu era um ser esquisito, pois eu conseguia matar um leão, mas ainda assim tinha medo de rato.
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Uma coisa que eu descobri nesse meu retorno de Saturno é que quando nós encobrimos as inseguranças dos outros através das nossas, nada dá certo, pois a base é fraca. E isso que eu fiz, eu encobri as inseguranças de outras pessoas e encobrir é um ato inseguro. Quando você é um sujeito e sabe da sua sujeitilidade e reconhece que antes de qualquer coisa, existe um eu, e um eu com limites, você vê que não deve encobrir nada. Você é, você se impõe, você decide. E o que eu vejo nesse lance de ser “mulher” é que não existe isso de se impor, porque “mulher” é ser incompleto, é um verbo transitivo direto ou indireto, e antes de tudo é uma subordinada.
Agir intransitivamente, não precisar de complemento, é o que somos. E é uma pena, que precisamos bater a cabeça às vezes, para lembrar isso. Fico feliz por ter sido agora, pois se tivesse sido antes talvez eu demorasse mais tempo para perceber que tudo é somente uma questão gramatical, onde sou um sujeito, com muitos predicados.

*eu preferi usar sujeitilidade (que não existe) e não subjetividade, pois esse segundo me parece ser o íntimo e não o completo, mas pense o que quiser.  

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